sábado, 20 de janeiro de 2018

Evangelho: Gênero Literário


O que é um Evangelho? É uma crônica, uma biografia, uma simples narração da vida de Jesus ou um tratado teológico?
Com certeza não se trata de uma biografia, nem nos moldes da antiguidade ou moderna. O esforço do movimento teológico liberal, no inicio do século XX, de reconstruir a vida de Jesus de Nazaré, fracassou.
Os evangelistas não tinham em mente escrever pormenores sobre a vida de Jesus, determinando o que ele fez ou deixou de fazer naquele dia especifico do calendário ou todas as suas atividades e movimentos. Isto fica claro ao se perceber que as indicações espaços-temporais das narrativas são na maioria das vezes genéricas: “na cidade”, “em casa”, “a caminho”, “naquele tempo”, “naquela hora”. A extensão do tempo do ministério de Jesus, segundo os sinóticos, é de no máximo um ano, com uma única subida da região da Galileia à Jerusalém e uma só Páscoa, enquanto examinando as informações contidas na narrativa do quarto evangelista Jesus esteve em várias ocasiões em Jerusalém e comeu ao menos três Páscoas, perfazendo um período de aproximadamente três anos e meio.
Assim, se os evangelhos não são história ou biografia da vida de Jesus, no sentido moderno destes termos, eles são o registro do kerigma (mensagem) proclamada inicialmente pelos apóstolos e depois pelos cristãos em geral. Esta mensagem era centrada na morte e ressurreição de Jesus e os evangelistas colocam estes acontecimentos como fatos verdadeiramente acontecidos.
Todos os evangelistas escreveram posteriormente aos acontecimentos ocorridos na última Páscoa, que se torna o epicentro da  narrativa evangélica, de maneira que não há da parte deles uma preocupação cronológica e topográfica mas sim histórico-querigmático, fundamentando no contexto histórico a mensagem do mistério da salvação realizada por Jesus na cruz, proclamada a todos em todos os tempos, e formulando assim, um convite aos respectivos leitores a tomarem uma posição pessoal diante destes acontecimentos. A mensagem proposta pelos evangelistas é basicamente salvífica.
O modelo evangélico literário foi inaugurado por Marcos e adotado pelos demais como protótipo. Este tipo de narrativa é decorrente das necessidades urgentes que sobrevieram mediante a sobrenatural expansão das comunidades cristãs. O grande perigo era de não se preservar a integralidade da pessoa de Jesus Cristo, mediante a tendência natural de se fixar em pontos particulares da vida dele. Os estudiosos citam alguns exemplos desta tendência:
as comunidades de origem judaico-cristã tinham a tendência de se fixarem apenas nos ensinos ou palavras de Jesus, conforme sua herança sapiencial advinda do judaísmo. É possível perceber isto nas coleções de ditos (lógia) que podem ser percebidas na própria redação evangélica. O grande risco era minimizar Jesus a um simples mestre de ensinos eternos.
- as comunidades de características gentílicas, mormente estabelecidas por Paulo e seus companheiros, enfatizando principalmente o evento da morte e ressurreição de Jesus, tornava periférico os acontecimentos históricos da vida de Jesus. As correspondências paulinas dão mínimas referências históricas sobre a vida e ministério de Jesus. O grande perigo aqui era dar a entender que Jesus irrompeu divinamente no mundo, podendo confundi-lo com os diversos deuses que compunham o panteão greco-romano.
- as comunidades cristãs helenísticas da região da Síria, tinham a tendência de enfatizar os milagres de Jesus e tornar secundários os demais aspectos citados. O risco aqui era tornar Jesus um “milagreiro”,[1] fazendo-o semelhante aos famosos mágicos (Elimas, junto ao governador Sergio Paulo, em Atos) e curandeiros da antiguidade, que tomado por uma profunda compaixão diante das misérias humanas, opera curas a favor dos pobres e necessitados.
O evangelista Marcos e seus companheiros inauguram esta nova forma literária, fazendo uma fusão entre a pessoa histórica de Jesus e o que ele disse e fez durante seu ministério, dando uma unidade aos diversos aspectos de sua personalidade: sua sabedoria, sua ações sobrenaturais, sua defesa  da liberdade do ser humano, seu mistério de morte e ressurreição, culminando com seu convite para que as pessoas viessem a crer nele como o enviado definitivo de Deus.
Ainda que Marcos seja o protótipo literário, cada evangelista manifesta sua peculiaridade e enfoque pessoais, conforme as necessidades de seus leitores alvos.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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Referências Bibliográficas
BETTENCORT, Estevão.  Para Entender os Evangelhos. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1960.
CARSON, D. A., MOO, Douglas J. e MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995.
HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 1983.
MIRANDA, 0. A., Estudos Introdutórios dos Evangelhos Sinóticos, São Paulo: Cultura Cristã, 1989.
RUSSELL, N. C. ‑ 0 Novo Testamento Interpretado, ed. 5ª, v. 1. São Paulo: Milenium, 1985.
TENNEY, Merrill C.  O Novo Testamento – Sua Origem e Análise, 2 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 1972.


[1] O evangelicalismo brasileiro atualmente tem caído neste terrível erro de transformar Jesus em um “milagreiro”, mas com uma intenção ainda mais danosa do que naqueles primeiros dias, pois a motivação atual é explorar a miséria e carência das multidões para se construir impérios financeiros, o que os transporta aos terríveis dias da Idade Média, denominada por alguns historiadores de Idade das Trevas. Inclusive as chamadas Campanhas, Caravanas ou Cruzadas Evangelística objetiva popularizar determinados líderes evangélicos para impulsionar a venda de seus multiformes produtos pessoais e/ou denominacionais.

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