quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Viajando no Evangelho Segundo Mateus (2.13-23)


A Crueldade Humana e a Providência de Deus
            Até aqui nossa viagem tem sido agradável. Jesus nasceu e foi honrado por sábios que percorreram milhares de quilômetros até encontra-lo. O primeiro contato com o rei Herodes foi positivo, mas orientados por Deus os visitantes fazem um novo caminho para sair dos domínios do rei dissimulado e implacável.
            Mas nuvens carregadas indicam que vem uma forte tempestade – a ira neurótica de Herodes será manifesta de forma implacável sobre os inocentes de Belém. Mas como Deus sempre esteve uma eternidade à frente do esquizofrênico rei da Palestina judaica, José, Maria e o menino Jesus já estão refugiados em território egípcio quando a ordem hedionda de Herodes foi executada.

Prossigamos com nossa viagem!

Evangelho Segundo Mateus (NVI)
Capítulo 2.13-23
Comentários
Síntese da Perícope: A Crueldade Humana e a Providência de Deus
Alertados por Deus em sonho os visitantes orientais retornam à sua terra por um caminho diferente, evitando qualquer novo contato com o rei Herodes, que dissimuladamente havia manifestado desejo de homenagear o recém-nascido.
Simultaneamente Deus uma vez mais orienta José através de sonho para que conduza Maria e o menino Jesus para o Egito. Imediatamente partiram e ali permaneceram até a morte de Herodes (que aconteceu nos primeiros três ou quatro anos da vida de Jesus).
Percebendo que os sábios do Oriente não retornariam para lhe informar Herodes tem um surto neurótico e ordena a chacina dos meninos de Belém de dois anos para baixo, com base na conversa que teve com os visitantes e o tempo que esperou o retorno deles.
Tendo morrido Herodes, uma vez mais Deus orienta José através de um sonho onde um anjo ordena que eles retornem para a terra de Israel, o que ele faz e sendo guiado vai morar na região da Galileia (Jesus será chamado de galileu).
Arquelau, filho de Herodes, o Grande inicia seu reinado na Judéia, e apesar de curto é suficiente para aterrorizar judeus e samaritanos que solicitam sua deposição (6 d.C.).
José estabelece sua família na cidade de Nazaré (Jesus será chamado de nazareno).  
13. Depois que partiram, um anjo do Senhor apareceu a José em sonho e disse-lhe: "Levante-se, tome o menino e sua mãe, e fuja para o Egito. Fique lá até que eu lhe diga, pois Herodes vai procurar o menino para matá-lo".
14. Então ele se levantou, tomou o menino e sua mãe durante a noite, e partiu para o Egito,
15. onde ficou até a morte de Herodes. E assim se cumpriu o que o Senhor tinha dito pelo profeta: "Do Egito chamei o meu filho".
16. Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos.
17. Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias:
18. "Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem".
19. Depois que Herodes morreu, um anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito,
20. e disse: "Levante-se, tome o menino e sua mãe, e vá para a terra de Israel, pois estão mortos os que procuravam tirar a vida do menino".
21. Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, e foi para a terra de Israel.
22. Mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judéia em lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Tendo sido avisado em sonho, retirou-se para a região da Galiléia
23. e foi viver numa cidade chamada Nazaré. Assim cumpriu-se o que fora dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareno.
Depois que os visitantes orientais retornaram para seu país, e sabendo Deus o que se passava nos bastidores do palácio de Herodes, uma segunda vez José recebe a mensagem angelical através de um sonho.
Desta vez orienta-o para que fuja rapidamente para o Egito “até que te avise”. É possível que Mateus, tendo em mente os seus leitores cristão-judaicos desejasse relembra-los do evento maior de sua história – o Êxodo – que era rememorado todos os anos na festa da Páscoa o ponto máximo do calendário religioso judaico. No transcorrer de sua narrativa Mateus vai apresentar Jesus como o novo Moisés (sobe ao monte para ensinar capto. 5-7); Jesus vem inaugurar a era messiânica. O paralelo entre Moisés e Jesus é evidenciado em relação ao Egito – ambos saíram do Egito para serem libertador/salvador de seu povo. Através de um José a família de Jacó/Israel foi levada e preservada no Egito; agora outro José leva o “menino-messias” para ser preservado de morte prematura nas mãos de Herodes.
Além desse paralelo o Egito desde há muito tempo acolhia a maior comunidade judaica fora da Palestina, principalmente em Alexandria, onde foi produzida a primeira tradução do cânon hebraico (Septuaginta), duzentos anos antes de Cristo.
Do Egito chamei meu Filho” o evangelista faz um link direto entre a estadia do menino Jesus no Egito e o cumprimento da profecia proferida por Oséias (11.1). Na simples leitura das palavras do profeta não se percebe alguma referência ao Messias, todavia à luz de Êxodo (4.23), da qual Oséias faz referência, há muito era aplicado pelos exegetas judeus ao Messias. Assim, o propósito de Deus que jamais foi plenamente realizado nos descendentes de Jacó/Israel, será plenamente realizado em Cristo; a vontade divina tantas vezes abandonada pela sistemática desobedecida dos israelita/judeus, será cumprido na perfeita obediência do Filho, no qual o Pai tem todo o seu prazer.
Enquanto José, Maria e o menino Jesus se refugiam no Egito, o rei Herodes percebe que os estrangeiros orientais lhe enganaram. Tomado pela fúria descontrolada que lhe era peculiar não pensa duas vezes e ordena que todos os meninos de dois anos para baixo sejam assassinados, em Belém e nas proximidades (fazendo os leitores se lembrarem da ordem de Faraó), conforme lhe haviam sido informado. E aqui Mateus uma vez mais interpreta como cumprimento da profecia de Jeremias (31.15). Raquel chora seus filhos em Ramá, pois foi aqui que após os exércitos babilônicos destruírem Jerusalém, os que haveriam de ser levados cativos ficaram aprisionados, até que iniciassem sua longa e dolorida viagem de seiscentos quilômetros até o exílio (Jr 40.1). O profeta Jeremias utiliza a figura maternal de Raquel, amada por Jacó e mãe de José e Benjamim, para representar toda a dor de contemplar seus descendentes sendo levados como escravos. A figura de Raquel chorando seus filhos sendo levados cativos é dramática e serve perfeitamente para ilustrar a dor e sofrimento das mães de Belém e adjacências que irão ver seus pequenos e amados filhos serem mortos cruelmente pelos soldados de Herodes (calculam-se que o número de meninos mortos por ordem de Herodes em Belém e arredores poderia ser de uns 20, outros sugerem 30 a 40 crianças). Mas assim como Raquel deve enxugar suas lágrimas, pois lhe é anunciada a esperança do retorno do cativeiro (Jr 40.15-22), as mães de Belém haverão de ser consoladas pela salvação provida por meio de Jesus.
Assim que Herodes morre, pela terceira vez José é comunicado através de sonho onde um anjo lhe ordena que retorne à sua terra. Evidente que a morte do terrível tirano rapidamente chegaria ao conhecimento dos judeus que moravam no Egito. Todavia, José ficaria com diversas interrogações: Quem assumiria o trono? Seria seguro ou sábio retornar à Palestina?  As ansiedades do dia se refletem no sono da noite, desta forma a mensagem angélica vem acalmar e sossegar o coração de José, dando-lhe a certeza de que Deus está no controle da situação.
Em obediência (ele se levantou) José mais uma vez empreende sua longa viagem, agora de volta a terra de Israel. O genuíno crente é aquele que tomando conhecimento da vontade de Deus, através da Palavra, obedece imediatamente. Um evangelicalismo desassociado da obediência à Palavra de Deus é estéril e produz somente a morte.
Mas a obediência não implica ausência de prudência. Ao chegar à Palestina José toma conhecimento de que Arquelau, filho de Herodes, reina na Judeia (Iduméia e Samaria) e fica temeroso. Arquelau demonstrou ser tão cruel e traiçoeiro quanto o seu pai e logo após assumir o governo desta região promove uma matança de três mil pessoas (cf. Josefo, Ant., 17: 11.2). Após nove anos de opressão e violência judeus e samaritanos se uniram, coisa rara, e solicitaram ao imperador romano que Arquelau fosse deposto e banido para a Gália. Portanto, os receios de José estavam bem fundamentados.
Estando com o coração novamente angustiado, pela quarta e última vez Deus vem ao encontro dele através de sonho, onde um anjo lhe indica a região da Galileia, governada por Antipas (Galileia e Peréia), menos violento do que seu irmão e seu pai.
Ali José fixa novamente residência na cidade de Nazaré, onde o evangelista relaciona mais um cumprimento profético – “Ele será chamado Nazareno” (v. 23). O profeta Isaías se refere à região como sendo “Galileia dos gentios” (4.15; 9.1), pois após a invasão dos assírios os judeus foram levados cativos e outros povos foram implantados na região (2Rs 17.23-24). Somenta após o retorno dos exilados da Babilônia no século II a.C. os reis hasmoneus conseguiram repovoar a região. Assim, a Galileia era menosprezada pelos moradores da Judeia (Jo 7.52), ainda que Isaías tenha anunciado que nesta região se manifestaria uma grande luz e que Mateus irá declarar que Jesus será o cumprimento dessa profecia (4.16; cf. Is 9.1-7).
Mas aqui (capto 2) Mateus não reflete alguma profecia especifica, mas por outro lado os profetas afirmam que o Messias seria desprezado e sofreria intenso opróbrio o que se harmoniza com sua “alcunha” de nazareno (por ex. Is 53.3; Sl 22.6).
Por outro lado, a região da Galileia sempre fora palco de focos de revoltas contra os romanos e a cidade de Nazaré provavelmente era a base desses revoltosos (pode vir alguma coisa boa de Nazaré). Jesus será crucificado sob a falsa acusação, da parte das lideranças judaicas, de ser um “nazareno” e líder de um movimento revolucionário contra o Império.
Qualquer relação com o voto de nazireu (nazareno) é equivocado, pois as duas palavras tem grafias distintas, tanto em grego como em hebraico, e a vida de Jesus expressa uma consagração (santidade) estando no mundo e interagindo com as pessoas (pecadores) para lhes comunicar a vontade e salvação graciosa de Deus (Pai não os tire do mundo, mas livre-os do mal).
Assim como aconteceu em seu nascimento, o “Rei-Messias” não crescerá na capital Jerusalém e nem no Palácio real, mas na região mais pobre e carente da Palestina. Nesses dias de um evangelicalismo comprometido com ascensão social e prosperidade, viver na região da Galileia não é uma opção. Mas é aqui que Jesus viveu e iniciou seu ministério; raramente sobe a Jerusalém e na derradeira vez será traído, humilhado e crucificado – ressurgindo no terceiro dia.

Aplicação Geral da Perícope 2.13-23
Há diversas e preciosas verdades que podem ser extraídas desta pequena, porém rica perícope e aplicadas nos dias atuais. Destacarei apenas uma.
v  Refugiados: Nenhum tema esta tão em voga hoje do que a questão dos refugiados e a narrativa evangélica coloca Jesus nessa condição, quando é obrigado a sair de seu país e se refugiar no Egito por causa da questão politico-religiosa representada na figura despiedado e sanguinário de Herodes. Ninguém se identifica melhor com aqueles que sofrem perseguição religiosa e são obrigados a viverem em circunstâncias desfavoráveis do que Jesus. Infelizmente os cristãos temerosos de perderem suas comodidades e terem suas zonas de conforto invadidas, optam pela indiferença e até mesmo se opõem abertamente contra todos os refugiados. Mas a Bíblia tem muitos exemplos de personagens que experimentaram na própria pele esta alcunha: Abraão, José e toda a família de seu pai Jacó/Israel; Moisés que foi acolhido pelo clã de seu sogro; os próprios judeus que passaram a viver na Babilônia (Daniel e seus amigos; o profeta Ezequiel); Susã, capital da Persia, onde viveu Neemias (Esdras, Zorobabel) e que não apenas o acolheu como seu rei Artaxerxes financiou sua viagem e todo necessário para reconstrução dos muros de Jerusalém; no Egito, onde se formou a maior comunidade judaica fora da Palestina e na própria capital Roma, onde milhares de judeus viveram. No dia de pentecostes Lucas nos apresenta um leque de nações que acolheram judeus. E quando falamos em acolher implica em que estes judeus estavam plenamente inseridos no contexto social destes países. Deus em suas leis e posteriormente por boca de seus profetas corrige continuamente os israelitas/judeus quando eles se recusam ou tratam mal os estrangeiros entre eles; exige que eles não apenas acolham tais pessoas, como os trate com toda presteza possível. Mas além dos imigrantes há também a questão dos desvalidos e párias sociais que vivem à margem da sociedade – homens, mulheres e crianças deixados à própria sorte. Ninguém os acolheu, valorizou e supriu suas necessidades como Jesus de Nazaré, que sentiu na própria pele o que significa ser descriminado, pois Ele cresceu em meio à região mais pobre e miserável da Palestina. Jesus em perfeita harmonia com toda revelação bíblica agiu em favor dos órfãos, as viúvas, os doentes, os que nada tinham e os que nada eram. Onde estão seus discípulos hoje?
v   



Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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NT – Introdução Geral

Referência Bibliográfica
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