sexta-feira, 21 de abril de 2017

O PEREGRINO: Autoria e Relevância

            Entre os livros mais vendidos de todos os tempos estão, pela ordem: a Bíblia, o Peregrino (autor: John Bunyan), o Livro Vermelho (de Mao Tsé-Tung), o Alcorão e Dom Quixote (de Miguel de Cervantes).  Se não houvesse, mas há, outras razões para se resgatar essa extraordinária obra literária evangélica, o fato de ser o segundo livro mais lido em todos os tempos já seria por si razão suficiente para resgatar e recolocar em seu devido lugar de relevância esta mais famosa alegoria[1] cristã evangélica – O Peregrino.
            Um resumo sucinto do conteúdo deste livro pode ser encontrado em seu próprio título estendido: O Progresso do Peregrino deste Mundo Àquele que está por Vir (The Pilgrim’s Progress from This World to That Which Is To Come).
            Ainda que esse livro atraia e encante crianças e jovens o Progresso do Peregrino não foi escrito objetivando esse público juvenil, mas sempre mirou os adultos, tanto homens quanto mulheres. No transcorrer da narrativa os leitores se deparam com as grandes verdades do Evangelho, ainda que a linguagem seja o mais simples possível, como todas as grandes obras devem ser. Nos diálogos e discussões entre seus mais variados personagens encontram-se por vezes pequenos sermões sobre os temas centrais da mensagem cristã, o que torna essa história não apenas fascinante e encantadora, mas também pedagógica e teológica.
O Autor
A história do Peregrino certamente esta entrelaçada com a própria história de seu autor. John Bunyan nasceu em 1628 na pequena aldeia inglesa de Elstow próxima de Bedford no coração da Inglaterra. Seu pai era pobre e andarilho, sempre de aldeia em aldeia oferecendo seus serviços de pequenos consertos dos utensílios domésticos, chamado de “latoeiro” ou mais popularmente “faz-tudo”, atividade exercida posteriormente pelo filho. Em seu próprio testemunho declara que viveu uma vida dissoluta e que não tinha qualquer interesse pela religião – mas tudo isso haveria de mudar.

Quando eclodiu a grande Guerra Civil inglesa, em 1642, tendo de um lado o rei Carlos I e do outro o Parlamento, então liderado pelos Puritanos, Bunyan uniu-se ao exercito do Parlamento (1644-1646). Com as descobertas recentes dos registros da guarnição, sabe-se que ele serviu em Newport Pagnell a partir de Novembro, 1644 até o mês de Junho, 1647, estando sob o comando de Sir Samuel Luke, parlamentar observador geral do Parlamento Puritano.
Em 1648, com a idade de vinte anos, casou-se com uma jovem que não apenas roubou-lhe o coração, mas o conduziu a uma experiência de uma nova vida. Seu nome não ficou registrado mas se especula fosse “Mary”, pois havia o costume de nomear a primeira filha com o nome da mãe e este era o nome da filha cega do Bunyan. Embora Mary fosse monetariamente pobre, seu dote foi de valor inestimável para o futuro de Bunyan. Ela trouxe uma fé prática para seu casamento, bem como o modelo de fé e vida cristã de seu pai. Bunyan escreveu: “Ela estava frequentemente falando-me de como seu pai tinha sido um homem de Deus e de como ele tinha o respeito de seus vizinhos e dos de casa por viver uma vida cristã santa na palavra e nas ações”. Quando veio a falecer, em 1658, a Sra Bunyan deixou o marido com duas filhas e dois filhos: Mary, Elizabeth, John e Thomas.
 Mas na vida de Bunyan nada era simples ou fácil e em decorrência de sua vida pregressa enfrentou intensas lutas interiores para voltar-se para Deus. O grito do apóstolo Paulo poderia ser ouvido em sua boca: “miserável homem que sou, quem me livrara do corpo desta morte”, pois seus pecados passados ​​eram como uma insuportável carga em suas costas, como ele mais tarde descreveu tão bem no personagem do "Peregrino".
Depois de profundos conflitos espirituais ele escapou desta condição e se tornou um entusiástico e assegurado evangélico. Ele foi recebido na igreja Batista em Bedford em 1653. Em 1655 ele se tornou um diácono e começou a pregar, com marcante sucesso desde o início. As pessoas ficavam encantadas com suas pregações e logo multidões vieram para ouvi-lo, atraídos pelo seu espírito sério e sua forma pitoresca impressionante.
Mas, como na vida dele nada era tão fácil, quando Carlos II tornou-se rei, baixou um decreto proibindo quaisquer atividades religiosas fora da jurisdição da Igreja da Inglaterra (Anglicana). Todavia, Bunyan e muitos outros pregadores denominados de dissidentes[2] continuaram a pregar, até que ele foi preso e enviado para a prisão em Bedford, na qual ele permanece por longos 12 anos. Para encontrar um meio de sobreviver na prisão ele faz trabalhos manuais que vendidos revertiam em renda para si mesmo e para sua família, incluindo sua filha cega.[3]
Mas semelhantemente com a vida de José, a prisão e sofrimentos de Bunyan foram transformados em bênção para milhões incontáveis, porque foi nesse período que esteve encarcerado em Bedford que escreveu o Progresso do Peregrino. Esta história destinava-se a ser uma parábola, como muitos dos ensinamentos de nosso Salvador (na verdade se constituiu em uma alegoria), isto é, colocar na forma de uma história a vida daqueles que encontrando a salvação através de Cristo, abandonando a vida de pecados enfrentam todas as adversidades externas e conflitos internos na sua jornada através deste mundo em direção ao céu. Mesmo uma criança que lê ou ouve a leitura do livro compreende em parte essa mensagem, mas é na medida em que ela amadurece e envelhece que vai se vendo cada vez mais nessa história e apreendendo melhor suas nuanças e peculiaridades.
Em 1672 Bunyan saiu da prisão e retoma suas atividades como ministro Batista e logo se tornou um dos pregadores mais populares em toda a Inglaterra. A caminho de Londres Bunyan foi acometido por um forte resfriado, e morreu de febre na casa de um amigo em Snow Hill no dia 13 de Agosto de 1688. Seu túmulo está localizado no cemitério
de Bunhill Fields em Londres. No mesmo terreno está enterrado outro grande escritor, Daniel DeFoe, cuja história de "Robinson Crusoé" se classifica ao lado do Progresso do Peregrino no número de seus leitores; Também Isaac Watts, autor de muitos hinos cantados em todas as igrejas, e a Sra. Susanna Wesley, a mãe do grande John Wesley. Quatro pessoas que deixaram uma marca profunda sobre o mundo estão todos juntos neste pequeno cemitério de Londres.
Contexto da Vida de John Bunyan
Os anos de 1640 e 1660, que demarcam os conflitos mais prolongados e intensos da guerra civil inglesa, constituem, no essencial, um intervalo distinto e bem definido entre a literatura produzida nos dias de Isabel e Tiago e as literaturas produzidas posteriormente no período denominado de restauração. A marca distintiva dessa nova literatura é que o escritor está menos preocupado com a retórica e o perfeccionismo linguístico literário e mais preocupo com as necessidades urgentes do momento das pessoas e da sociedade. Seu objetivo é alcançar a mente do público-leitor diretamente e imediatamente, e assim moldar a política nacional em momentos críticos na vida da nação. E o contraponto de Bunyan é o escritor Butler; enquanto Bunyan representa o pensamento e a literatura puritana, Butler satiricamente deprecia toda forma de puritanismo bem como suas figuras mais proeminentes.
Quanto à influência de Bunyan sobre a vida e a literatura inglesa é preciso lembrar que naquele momento seu propósito é unicamente religioso e que iria contra sua consciência visar alcançar sucesso e/ou a distinção literária. Todavia, o Progresso do Peregrino tornou-se um dos poucos livros que se constituíram em um vínculo religioso para toda a Cristandade inglesa.
Como um criador de personagens fictícios, ele encantou o mundo, tecendo-os em uma história de interesse universal e influência duradoura. Seu livro não só ganhou os corações das crianças em uma fase de pouca percepção de suas implicações espirituais, mas também tem sido uma bússola para vida de milhões de pessoas perplexos com os problemas da vida. Este é o grande mérito do livro, os adultos encontram respostas para suas vidas e as crianças se divertem com seus ricos personagens. Com sua linguagem alegórica Bunyan comunicou muito mais verdades fundamentais da mensagem evangélica do que tantas outras obras mais pretensiosas produzidas ao longo dos séculos.
Mas como quase sempre acontece, a classe literária, como um todo, na época e mesmo muito tempo depois, deu ao livro uma recepção depreciativa. Mas enquanto a classe instruída diferia amplamente no julgamento, o mundo geral dos leitores nunca vacilou em sua estimativa favorável do livro. Entre 1678, quando apareceu pela primeira vez, e 1778, trinta e três edições da primeira parte (livro) e cinquenta e nove edições das duas partes juntas foram produzidas, e então os editores deixaram de contar.[4] Calcula-se que cem mil cópias foram vendidas durante a vida de Bunyan (o primeiro bestseller evangélico na história).
Sua influência literária também não ficou confinada apenas à Inglaterra. Três anos depois de sua publicação, ela foi reproduzida pela colônia puritana da América, recebido com muito carinho e apresso e permanecendo sendo impresso até os dias atuais. E, com Shakespeare, faz parte do vínculo literário que une os dois povos de língua inglesa de cada lado do Atlântico. Outras traduções do sonho de Bunyan continuaram a se multiplicar até o presente. Existem agora versões do Progresso do Peregrino em não menos de cento e oito línguas e dialetos diferentes. E não é exagero afirmar que o Peregrino é o segundo livro mais popular depois da Bíblia.
O livro passou por onze edições quando o autor ainda vivia e até hoje continua sendo editado em grande parte do mundo. Nas edições em inglês passou-se a publicar as duas partes e/ou histórias em um volume, mas originalmente, como aqui no Brasil, as partes foram publicadas separadamente. A primeira parte em 1678 e a segunda somente em 1684. A primeira edição em que as duas histórias apareceram juntas foi publicado em Londres em 1728. Bunyan começou a escrever a primeira parte em 1668, enquanto na prisão, e teve o cuidado de consultar muitas pessoas sobre o seu conteúdo antes de levá-lo para a imprensa.
Alguns críticos literários ingleses consideram o Peregrino como sendo o primeiro romance (novela) da literatura inglesa e muitas vezes comparada com a obra de Milton “Paraíso Perdido” (Paradise Lost). O Progresso do Peregrino é excepcionalmente útil, pois embora amplamente acessível e divertido, ele expõe de forma critica muitos aspectos da teologia de seus dias e da teologia do século XXI. A teologia de Martinho Lutero, um dos arquitetos da Reforma Protestante, é particularmente proeminente em todo o trabalho de Bunyan.
            Concluo esse primeiro artigo com algumas informações peculiares relacionadas à vida de John Bunyan e à sua obra O Progresso do Peregrino, extraídas da revista Christian History (Edição 11: John Bunyan & Pilgrim's Progress; 1986).
Você Sabia?
§  Com a cooperação de seu carcereiro, Bunyan ocasionalmente foi autorizado a deixar sua cela da prisão para ir e pregar nos “cultos ilegais” que ocorriam em segredo, após o que voltava voluntariamente para sua cela na prisão.
§  Bunyan fez cadarços enquanto preso para sustentar sua família, "muitas centenas de dúzias" por conta própria.
§  Em termos de números, Progresso do Peregrino teria sido o primeiro bestseller se tivesse sido escrito em nossos dias, pois somente em 1962 foram impressos 100.000 cópias em inglês.
§  Em janeiro de 1672, a Igreja de Bedford convidou John Bunyan para ser seu pastor enquanto ele ainda estava na prisão.
§  Enquanto alguns Batistas têm orgulhosamente de Bunyan, outros Batistas ainda hoje o rejeitam por causa de sua tolerância em relação ao batismo, exposto em seu artigo: Posição em seu trabalho “Diferenças na Questão Sobre o Batismo na Água, Nenhuma Barreira para a Comunhão” (Differences in Judgment About Water Baptism, No Bar to Communion).
§  Quando os magistrados locais condenaram Bunyan à prisão, ofereceram a ele uma alternativa desde que lhes prometesse que não iria pregar mais nos cultos clandestinos. Ele recusou, declarando que ficaria na prisão até que o musgo crescesse em suas pálpebras ao invés de não fazer o que Deus lhe ordenou que fizesse.
§  Nos dias de Bunyan, grandes pregadores influenciaram a opinião pública tanto quanto os meios de comunicação de massa hoje, o que foi uma das razões pelas quais suas atividades sem licença foram tratadas como uma ameaça.
§  Um vitral fazendo referência a John Bunyan foi colocado na abadia de Westminster em Londres.
§  Bunyan combinou sua habilidade como um artesão e seu amor pela música para criar um violino de ferro; Mais tarde, durante sua prisão, ele entalhou uma flauta da perna de um banquinho que fazia parte de seus poucos móveis.
§  Quando o governo comunista chinês imprimiu o Progresso do Peregrino como um exemplo Cultural, uma impressão inicial de 200.000 cópias foi vendida em três dias!
§  A igreja que Bunyan pastoreou ainda continua no coração de Bedford, Inglaterra. Agora chamado de "Assembleia Bunyan", é afiliada tanto aos batistas bem como aos congregacionais.
§  Entre as idades de 16 e 19, Bunyan serviu no exército Parlamentar.
§  A posição religiosa que Bunyan defendeu e pela qual foi preso, finalmente prevaleceu com o Ato de Tolerância de 1689, que reconheceu na Inglaterra os direitos religiosos de dissidentes e não conformistas, ou seja, os direitos dos pregadores e igrejas fora do Anglicanismo.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

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Referências Bibliográficas
Brown, John. John Bunyan, His Life, Times and Works. Ed. Frank Mott Harrison. London: The Banner of Truth Trust, 1964.
BUNYAN, John. O peregrino: com notas de estudo e ilustrações. Trad. Hope Gordon Silva. São Paulo: Editora Fiel, 2005.
______________. Grace abounding to the chief of sinners. Disponível em
<http://acacia.pair.com/Acacia.John.Bunyan/Sermons.Allegories/Grace.Abounding/Account.Ministry.html>. Acesso em abril de 2017.
 FOXE, John. O livro dos mártires. Traduzido por Almiro Pizetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2003.
GREAVES, Robert L. John Bunyan. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1969.
HARRISON, G. B. John Bunyan, A Study in Personality. London: J.M. Dent and Sons, 1928
MARGUTTI, Vivian Bernardes. Peregrinos em busca: alegoria, utopia e distopia em Paul Auster, Nathaniel Hawthorne e John Bunyan. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2010. (Tese Doutorado em Letras: Estudos Literários, Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Ferreira Brandão
Santos).
 SANTOS, Tiago. A Peregrinação cristã: sofrimento e vida de John Bunyan. http://voltemosaoevangelho.com/blog/2014/03/a-peregrinacao-crista-sofrimento-e-vida-de-john-bunyan-tiago-santos/



[1] Uma alegoria (do grego αλλος, allos, "outro", e αγορευειν, agoreuein, "falar em público", pelo latim allegoria) é uma figura de linguagem, mais especificamente de uso retórico, que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão transmite um ou mais sentidos além do literal.
[2] Os dissidentes, do partido dos Puritanos, eram vistos nesse momento como potenciais revolucionários à espera de uma chance para assassinar o rei Charles II como haviam assassinado Charles I.
[3] Ele se casou duas vezes. Sua primeira esposa, uma pessoa tão pobre como ele, trouxe-lhe um dote simples, duas obras puritanas: de Arthur Dent “The Plain Mans Pathway to Heaven” e de Lewis Bayly “The Practice of Piety”, infelizmente não se sabe o nome dela, mas desse casamento nasceram quatro filhos, incluindo uma filha cega Mary. Sua segunda esposa, Elizabeth, era uma mulher de forte personalidade que sempre se colocou em oposição aos poderosos e lutou pela liberdade de Bunyan, quando esteve preso por causa de sua pregação. Elizabeth e John Bunyan tiveram dois filhos.

[4] Há uma terceira parte falsamente atribuída a Bunyan que apareceu em 1693, e foi reimpressa em 1852.

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