terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O Getsêmani na Narrativa de Marcos (14.32-42)


            O Natal com suas celebrações coloridas e festivas já passaram, novamente nos aproximamos da celebração da Páscoa Cristã, com sua densidade e sofrimento. Nada poderia ser mais contrastante do que as duas maiores celebrações cristãs: Natal e Páscoa – Natividade e Morte.
            Evidente que humanamente preferimos o Natal a Páscoa, todavia, o Natal ficaria totalmente sem sentido sem a Páscoa. A razão última pela qual o Filho de Deus se encarnou (Natal) foi a Cruz (Páscoa).
            Mas assim como o Natal foi substituído pelo bonachão papai Noel e suas árvores coloridas e seus presentes e suas comilanças, também a Páscoa tem sido substituída por um coelhinho fofinho e seus deliciosos ovinhos de chocolate. O que deveria ser um momento de profunda reflexão sobre a mensagem evangélica, transformou-se em duas festas hedonista e consumista.
Há muito tempo que o feriadão da chamada “Semana da Paixão de Cristo” tornou-se para os evangélicos a oportunidade de “fugir” da cidade em um êxodo para qualquer outro lugar, que lhes proporcione deleite e prazer, exatamente o oposto do significado das cenas evangélicas. Se nem os “crentes” desejam apreender o sentido real da Páscoa, o que esperar da Sociedade brasileira?
            Apesar de ser o mais breve dentre as quatro narrativas evangélicas que fazem parte do Segundo Testamento [NT], Marcos em nada fica devendo em termos de informação e detalhes preciosíssimos sobre a pessoa e ministério de Jesus. Ele não gasta uma linha sequer sobre o nascimento de Jesus (Natal), todavia, como os demais companheiros evangélicos reserva um espaço considerável para registrar minúcias sobre a última estadia de Jesus em Jerusalém, e muitos dos acontecimentos ali ocorridos, culminando com Sua morte e ressurreição. Nos primórdios do cristianismo esse era o núcleo da pregação apostólica,[1] que somente incluirá as narrativas da natividade em um momento posterior e registradas por Mateus e Lucas.
            Portanto, resgatarmos as narrativas sobre a Paixão de Cristo é resgatarmos o núcleo central do Evangelho e do próprio Cristianismo. Muitos comentaristas referindo-se às narrativas evangélicas declaram serem elas relatos da Paixão precedidos por uma longa introdução. E o próprio Jesus (não Pedro ou Paulo) sintetizou nas seguintes palavras o que significa ser “cristão” ou “cristianismo”: “negue-se a si mesmo, tome a cruz”, portanto, qualquer expressão cristã que não implique nestas duas primícias não é genuinamente uma expressão do genuíno cristianismo. Desta forma, esse evangelicalismo institucionalizado brasileiro, não apenas está alienado dessa proposta de Jesus, quanto mais a rejeita abertamente com seu estilo de vida narcisista e materialista. Enquanto o Brasil está mergulhado em uma das mais profundas crises institucional-social, onde milhões de brasileiros estão sendo privada das condições básicas de subsistência, a preocupação de muitas denominações evangélicas (históricas, pentecostais e neopentecostais) é a de construírem templos maiores e com todo o conforto possível para seus membros (ou sócios, ou plateia) e/ou simplesmente para ostentarem alguma espécie de poder megalomaníaco-esquizofrênico de seus líderes (ou donos).
Jesus em Jerusalém[2]
            Jesus já está na cidade de Jerusalém e sabe que serão os momentos derradeiros de seu ministério. Desde quando iniciou sua última subida à Capital Jesus dedica-se em preparar os discípulos para os acontecimentos que rapidamente se sucederão no transcorrer desta semana da Páscoa. Sua entrada triunfal, suas idas ao Templo e seus momentos de refrigério e intimidade com seus discípulos, principalmente na casa de Lazaro, se concluem nesta última ceia pascoal com os discípulos no cenáculo cedido, provavelmente por Maria, mãe do então adolescente João Marcos.
Jesus no Getsêmani
            Terminada a refeição noturna da Páscoa, detalhadamente descrita na narrativa joanina, Jesus sai com os discípulos e se dirige ao jardim do Getsêmani,[3] ainda dentro dos limites da cidade. Nesta curta caminhada de aproximadamente um quilômetro até o jardim, localizado na encosta ocidental do Monte das Oliveiras, segundo esse evangelista Jesus alerta Pedro sobre sua atitude de negá-lo e aos demais que no momento derradeiro se dispersaram (cf. Zc 13.7).
São as horas derradeiras! As últimas areias caem rapidamente na ampulheta do “kairós” divino e Jesus tem plena consciência disso. Vai utilizar-se desses últimos grãos da areia temporal se preparando para enfrentar tudo que está por lhe suceder. Nada melhor do que estar na presença do Pai. O Pai o havia enviado, o Espírito Santo lhe sustentou e capacitou em todo o tempo, agora é o momento de reunir todas as forças e disposição para concluir sua obra redentora. Precisa do Getsêmani, assim como precisa do ar para respirar. Somente o Getsêmani nos prepara as horas agudas da vida. Está chegando a hora![4]
            A narrativa de Marcos é de uma surpreendente simplicidade que deixa os leitores desconcertados. Apesar de ter escrito posteriormente aos acontecimentos, registra no presente histórico[5] tornando os fatos vividos, como se estivéssemos juntos com Jesus em cada segundo. A cena do Getsêmani, onde Jesus desnuda toda sua humanidade será concluída nas suas últimas palavras na cruz: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparastes”, deixando claro para o leitor a intensidade do sofrimento experimentado por Jesus em seu caminho do jardim até o calvário.
“Sentai-vos aqui enquanto vou orar” (14.32)
            Em outros momentos da narrativa marcana Jesus se afasta para orar sozinho (cf. 1.35; 6.46), mas diferentemente aqui ele retorna aos discípulos e solicita sua companhia. E mais uma vez convida o trio Pedro, Tiago e João para presenciarem um momento particular, assim como ocorrera na ressurreição da filha de Jairo (5.37) e na transfiguração (9.2). Assim como eles tinham vivido o momento glorioso da transfiguração de Jesus, agora também haverão de vivenciar o momento mais angustiante de seus sofrimentos.[6] Mas diferentemente eles não pedem para permanecerem ali no Getsêmani, na verdade sempre queremos evitar o Getsêmani.
“começou a apavorar-se e a angustiar-se” (14.33). Marcos utiliza dois verbos que unidos expressam toda a intensidade do sentimento de Jesus naquele momento (ekthambeísthai e ademoneín). Eles expressam o momento de petrificação, desorientação, abatimento, grande ansiedade, inquietude e angústia.
“A minha alma está abatida [oprimida, esmagada] até a morte” (14.34), são expressões que aparecem nos momentos mais agudos dos salmistas (Sl 42.5-6, 12; 43.5; 116.3). Jesus se identifica com os salmistas que momentaneamente se sentem abandonados e sozinhos diante de uma circunstância onde suas vidas estão em mortal perigo. Ele sabe que Judas, o traidor se aproxima rapidamente, sabe e avisou que Pedro o negaria, tem consciência da condenação do Sinédrio, da sentença de Pilatos, dos escárnios de seus inimigos e que seria cruscificado pelos soldados romanos. Mas o que mais em dói em Jesus é o silêncio da parte de Deus. O silêncio de Deus atinge intensamente e dilacera o coração crente!
“Permanecei aqui e vigiai” (14.34b). Diferente das outras ocasiões Jesus solicita o apoio dos discípulos, mas nem isso eles puderam oferecer. Apesar de Jesus revelar-lhes seu estado de espírito angustiado, eles não se tornam solidários; nenhuma palavra, nenhuma reação da parte deles – Jesus que durante todo seu ministério se identificou com a dor e sofrimento de outros, não encontra ressonância em seus próprios discípulos. A
solidão de Jesus é plena! Como é difícil encontrarmos genuína solidariedade nos momentos de angustia e dor! Mas por outro lado, raras vezes nos tornamos oásis na vida daqueles que sofrem, na maioria do tempo somos apenas deserto.
“Caiu por terra” (14.35). O prostrar-se é a posição que configura a profunda humildade, dependência e suplica daquele que ora, diante do Deus que tudo pode (cf. Gn 17.3, 17; Lc 5.12; 17.16). É somente no Getsêmani que sentimos e expressamos toda nossa fragilidade e incapacidade diante de Deus. Aqui Jesus revela a plenitude de sua humanidade, colocando-se diante do pai como um suplicante de sua misericórdia e graça! Assim como os salmistas que em meio às mais angustias, ansiedades e medos se lamentam e interrogam, mas nunca se afastam de Deus, assim também o faz Jesus diante do Pai. O Getsêmani não afasta o genuíno crente de Deus, ao contrário, o leva para mais perto de Deus!
“E orava para que, se possível, passasse dele a hora” (14.35). É a primeira vez que tomamos conhecimento do conteúdo da oração pessoal de Jesus. Ele sabia que a “hora” havia chegado, tem plena consciência de que veio para esta “hora”; é o tempo previamente antecipado pelos profetas, preparado e determinado pela divina providência. É o tempo conclusivo, que encerra um período histórico (velha dispensação) e inaugura um novo período histórico (nova dispensação). Mas aparentemente tudo concorre para um fracasso e não um sucesso. A perspectiva de Deus realmente não é a nossa.
E dizia: Abba, Pai[7] tudo te é possível; passa de mim esse cálice; contudo, não seja o que eu quero, mas o que tu queres” (14.36). A oração completa, somente poderia ser expressa pelos lábios de Jesus, o Filho. Se as nossas orações se assemelham com a de Jesus nas duas primeiras expressões, inevitavelmente temos tremendas dificuldades com a última parte. Em outros dois momentos Jesus havia se referido ao cálice que haveria de beber (10.38-39; 14.23), mas aqui é o momento derradeiro. No Primeiro Testamento [AT] se utiliza a figura do cálice para se referir ao tempo da manifestação da ira de Deus (o mesmo acontece no Apocalipse); o evangelista mantém a figura com toda sua carga de sofrimento e dor. Tudo que está por acontecer com Jesus a partir deste momento do jardim não é coincidência e nem simplesmente expressão da maldade das lideranças religiosas judaicas, mas antes e acima de tudo, o cumprimento dos desígnios de Deus – ainda que os eventos sejam conduzidos pelos homens, o cálice vem das mãos do Pai.
“Simão está dormindo?” (14.37). Enquanto Jesus ora em profunda angustia, os discípulos dormem! O sono dos que não se apercebem da relevância do momento, da hora que se aproxima. “não foste capaz de vigiar uma hora?” não apenas no aspecto físico (canseira), mas de animo e disposição da alma e do coração – não são solidários ao momento do Mestre. “Vigiai e orai” (14.38) do singular para o plural, a ordem é para todos e não apenas para um. Na questão da oração todos devem se empenhar solidaria e solicitamente, e não apenas alguns “especiais” ou “líderes espirituais”. Vigiar é a tônica diferencial da genuína oração, implica em atenção zelosa, prontidão e resistência (cf. 1Ts 5.8; 1Co 16.3; Rm 13.11,12; Ef 6.16; 1Pd 5.8-9). “Para que não entreis em tentação (provação)” (14.38b). Jesus não está sendo tentado pelo Pai, mas está debaixo de Sua maior provação (fazer a vontade do Pai e não a Sua); a oração é para que não venhamos a sucumbir diante das dificuldades e lutas da vida; pois “o espírito está pronto, mas a carne é frágil” (14.38c); a carne representa todas as limitações e fragilidades humanas e o espírito representa a força e capacitação que vem da parte de Deus. Para fazer a vontade de Deus é necessária uma total dependência dos recursos espirituais que somente podem vir da parte de Deus. Nossas mais fragosas derrotas e decepções são produzidas no apogeu de nossa autoconfiança e nossa total displicência em relação aos recursos de Deus. A narrativa evangélica quer deixar bem claro que o homem Jesus conheceu profundamente os embates da vida e de sua experiência vivencial ele nos ensina – VIGIAI E ORAI!
“seus olhos estavam pesados de sono” e sono é encontrado na literatura bíblica como corações empedernidos (cf. Mc 3.5; 6.52; 8.17; Jonas desce ao porão do navio, para Tarsis, o oposto da vontade de Deus, Nínive, e dorme profundamente).
“Dormi agora e repousai” (14.41), que pode ser interpretada como “Ainda estais dormindo e repousando!”, como sendo uma amarga e melancólica constatação. Basta”, agora o tempo já se esgotou. Eis que o Filho do Homem está sendo entregue às mãos dos pecadores” (14.41), que é a tônica dominante da narrativa marcana (cf. 14.44; 15.1, 10, 15). Aqui temos as duas forças motoras a Paixão: Deus que cumpre seus desígnios e os homens que em sua ignorância e maldade querem destruir a vida de Jesus. Judas será o representante de todo ser humano que se frustra com Jesus e faz a opção de seu próprio coração.
“Levantai-vos! Vamos! (14.42). Depois de se sujeitar plenamente à vontade do Pai, Jesus retoma sua serenidade e assume seu papel de protagonista dos eventos imediatos. Ele se coloca entre o desígnio de Deus e a maldade inerente do coração humano. Esse é o modelo para todo crente e toda igreja em todos os tempos e lugares. Colocarmo-nos entre a realização da vontade de Deus e as arbitrariedades humanas. Nunca o nosso país tanto necessitou de cristãos e igrejas assim! Mas como os discípulos “nossos olhos estão pesados demais” e permanecemos “dormindo e repousando”, enquanto a nação e o mundo estão à beira da destruição e da morte.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Historiologia Protestante
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/


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Referências Bibliográficas
ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. London: Marshall, Morgan & Scott, 1976.
BETTENCOURT, Estevão. Para Entender os Evangelhos.  Rio de Janeiro: Agir, 1960.
CARSON D. A., DOUGLAS, J. Moo & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:  ed. Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 2006, 8ª ed.
CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark. Cambridge: Cambridge University Press, 1966. 
GALIZZI, M. Gesú nel Getzemani (Mc 14.32-42; Mt 26.36-46; Lc 22.39-46). Roma: Pas-Verlag, 1972.
GUTHIRIE, Donald. New Testament Introduction. Illinois: Inter-Varsity Press, 1980.
LEAL, João. Os Evangelhos e a Crítica Moderna. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1945.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da Paixão. Tradução de Bertilo Brod. São Paulo: Palinas, 2000. [Coleção Espiritualidade sem fronteiras].
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos – introdução e comentário. Tradução de Maria Judith Menga. São Paulo: Vida Nova, 1999. [Série Cultura Bíblica].
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos, v.1, ed. Vozes, Petrópolis, 2002.
TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.
TORREY, C. C. The Four Gospels, 2nd ed. New York: Harper, 1947.
WENHAM, J.W. Did Peter Go to Rome in ad42?. Tyndale Bulletin 23 (1972) 94-102.





[1] Ver os extratos dos sermões de Pedro e Paulo, registrados por Lucas em seu segundo volume Atos.
[2] Marcos e seus colegas sinóticos (Mt e Lc) deixam transparecer que é a primeira vez que Jesus sobe à Jerusalém desde quando iniciou seu ministério, todavia, nos relatos evangélicos de João encontramos informações de que esta é a terceira vez que Jesus sobe com seus discípulos à Jerusalém (2.13; 5.1 e 7.10).
[3] “gat shemanim”, que significa “prensa dos óleos”, é um terreno onde se cultiva oliveiras.
[4] O Getsêmani lembra tentação no deserto (1.13) quando da preparação em oração para o início do seu ministério público (1.35). Jesus se retira para orar no princípio de seu ministério para compreender o seu próprio caminho; agora ele igualmente faz para enfrentar a conclusão de seu ministério. 
[5] A utilização dos tempos verbais nessa narrativa do Getsêmani emolduram as ações de forma maravilhosa, como tão bem destaca Galizzi: “O presente histórico registra e torna imediatos os fatos, o imperfeito os descreve” (1972, p. 28, apud, MAGGIONI, 2000, p. 19).
[6] Há duas diferenças ilustrativas nas duas cenas paralelas da transfiguração e do Getsêmani: na transfiguração podemos ouvir a voz do Pai, aqui um profundo silêncio se faz sentir; na transfiguração contemplamos Jesus em sua glória e divindade, e aqui em sua plena humanidade.
[7] Jesus deve ter usado somente o substantivo aramaico Abba e o evangelista acrescenta o termo Pater do grego para esclarecer o leitor não judeu. No aramaico é um termo familiar de intimidade, algo como Papai das crianças pequenas, mas nunca utilizada em relação a Deus. Ao fazê-lo aqui Jesus expressa sua plena intimidade com o Pai e sua plena confiança em seu amor.

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